Raimundo Dejard
u cheguei em Belém no ano de 1969, com 14 anos, vindo de Parintins, no Amazonas. Já havia tido notícias sobre o Movimento dos Focolares por intermédio de missionários italianos, do PIME. Um deles, Gino Malvestio, sabendo que eu viria para a capital do Pará, para estudar, entregou-me uma carta de recomendação direcionada ao Focolare de Belém – que, na época, ficava na rua Soares Carneiro (bairro do Telégrafo).
Confesso que não foi difícil participar do grupo, pois, desde o início do contato, fui bem recebido por todos e devidamente integrado àquela comunidade. Nela, vivi uma das experiências culturais mais fortes de minha vida e que me proporcionou alguns dos valores e visão de mundo que, até hoje, guiam-me na caminhada.
Destaco alguns aspectos dos enredos vividos e representados em espetáculos do Conjunto GEN SINCO de que participei, concebidos e montados naquela época. São apenas imagens, lembranças, mas com profundos significados que, aqui, compartilho como reflexões pessoais.
O nome do primeiro show em que estive presente foi Em Tempos de Trevas e de Luz. Nele, o foco era apresentar a luta entre o bem e o mal, tendo como pano de fundo a luta do Brasil em resolver os seus problemas sociais. Eram como “sombras” que buscavam as “luzes”, na mensagem do Evangelho, para enfrentar a tragédia da desigualdade social.
Poucos anos depois, já com um pouco mais de maturidade artística, produzimos o show Eli, Eli Lama Sabactani, expressão em aramaico que significa “Meus Deus, Meu Deus por que me abandonaste?”. Em seu roteiro, todos os problemas humanos, sociais e individuais transpareciam como um grito (existencial) sem resposta, mas que podia ter eco e encontrar sentido naquele de Jesus na cruz. O homem não está só e à deriva no mundo – sugeria a mensagem. Deus, misteriosamente, está com ele.
Lembro-me que o palco desse espetáculo foi a Igreja das Mercês, com sua beleza exterior e interior barroca, e que acolhia o nosso grito. Justo uma Igreja que, sendo símbolo da colonização, então se transformava no símbolo da “descolonização”, por meio do Verbo.
Chega o Natal de 1973 e se monta mais um show, agora com severas críticas à maneira consumista de se celebrar essa festa cristã. O que fizeram do Natal – título da montagem – apontava o esquecimento da mensagem de amor do aniversariante da efeméride: Jesus.
Essa mesma reflexão de fundo nos levou a pensar o tema da cidade, com os seus problemas sociais e morais, no show Cidade Alta, Cidade Baixa (1974), em que a música, como trombetas de profecia, denunciava as maldades do homem. No roteiro, abordamos com consciência maior, igualmente, o drama das meninas de "vida fácil", as prostitutas, sem apontar-lhes o dedo de acusação – antes, implorando para elas terem misericórdia de nós.
Mas foi no Theatro da Paz, principal e mais tradicional casa de espetáculos de Belém, que apresentamos os dois shows tecnicamente mais elaborados e marcantes da história do Conjunto, do ponto de vista estético: Montaria e Tupambaé.
O início de Tupambaé retratava o big ben, a explosão inicial do mundo. Eram usados guarda-chuvas pretos, que reluziam, pintados de tintas fluorescentes, na escuridão. Sob um som eletrônico e um texto mítico da cultura ameríndia, Mavustsinin, nossa ancestralidade amazônica dava o seu recado, com solenidade. No ápice do show, prendíamos Jesus; e, em forma de dança, o chicoteávamos, para depois crucificá-lo numa escada. Para a mim, a escada – e não a tradicional cruz – tinha dois significados: um, quando se a descia, visava-se a simbolizar o maior mal humano; o outro, o caminho de subida, representava os degraus para toda a humanidade poder chegar ao Paraíso, revelado por Jesus.
Com os shows, percorremos várias cidades e palcos diferentes. No Pará, fomos a Abaetetuba, Capanema, Castanhal e Bragança. Em outros estados, fomos a Macapá (Amapá), Teresina (Piauí) e São Luís (Maranhão).
Mas houve um momento triste, de corte, nessa longa trajetória. Foi quando Heleno, nosso diretor, mestre e amigo, foi transferido de Belém. Heleno de Oliveira, focolarino, era professor de Literatura brasileira, com vocação de teatrólogo. Alguém que, junto com um grupo de adolescentes e jovens, chegou a elaborar e executar uma dezena shows do GEN SINCO. Alguém que proporcionou àquele grupo um contato com a poesia brasileira e seus principais movimentos culturais, a exemplo da Tropicália, da Bossa-Nova e do Cinema Novo. Para aqueles jovens participantes, dentre os quais eu me encontrava, foi um ingresso espetacular no mundo da cultura brasileira, e que envolvia uma reflexão sobre os problemas sociais a partir de um olhar inspirado pelo Evangelho, interpretado pela espiritualidade do Movimento dos Focolares.
Com a partida de Heleno, tivemos que arregaçar as mangas e criar, por nossa conta, novos espetáculos, sem mais a sua presença. Foi o caso do show As Sete cenas de Patmos, inspirado no Apocalipse de S. João. Foram visões, intuições e experimentações que nos levaram, por exemplo, entre outras cenas, a uma coreografia denominada A nossa vida é um círculo – por mim (texto) e pelo Edison Farias produzida. Em indumentária, danças e gestos expressivos e afinados ao tema, dávamos um recado de que a vida circula constantemente, em idas e vindas, como na imagem do “eterno retorno”, de Nietzsche.
Toda essa experiência não morreu em mim, mas plantou sementes que continuam a dar frutos hoje e sempre.