José Afonso Medeiros Souza
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975. Mais um dos chamados “anos de chumbo da ditadura”. Adolescente, oriundo da periferia de Belém e aluno de escola pública, nem mesmo eu sabia o que essa expressão significava. Eu tinha 15 anos, era setembro, e havia enterrado meu pai há poucos dias. Convidado por dois primos, fui a uma reunião de jovens, na Igreja das Mercês. Era uma tarde de sábado. Eram os Gen. Não me lembro mais do que se falou naquela ocasião. Mas ali se cantava; e muito e bem!
Tentando (desde os 13 anos) manter distância do ar carola que se respirava na paróquia, aquela reunião dos Gen, num dos mais belos templos barrocos de Belém, configurou-se como uma epifania para mim: era pop e era leve, apesar de católica. Esse misto quente de visualidade barroca e cultura pop deixou-me “mundiado”.
Ainda naquela tarde de sábado, fui informado que os Gen se encontravam quase que diariamente na Capela de Lourdes, durante a missa das 17:30. E lá fui eu atrás de mais conversas e de mais cantorias. Foi nessa capela, no final desse mesmo ano, que vi pela primeira vez um show do GEN SINCO. Era Montaria. Mais uma epifania! E poderosa, pois misturava o divino com o maravilhoso; a poesia mística com a poesia popular. Desses primeiros momentos, a memória resguardou duas figuras: Heleno de Oliveira e Demétrio Oliveira (que não eram parentes).
Foi num piscar de olhos que me engajei na Geração Nova do Movimento dos Focolares. Mergulho de cabeça, mesmo. Missa, meditação e rosário diariamente; reuniões semanais; aulas de reforço para a meninada dos alagados do Guamá e feiras da pechincha (com roupas arrecadadas de porta em porta por nós) para suas famílias; e congressos/retiros regionais ou nacionais, três ou quatro vezes ao ano. A partir daquela tarde de sábado, nas Mercês, foram sete anos de uma experiência que me fez alargar o sentido da espiritualidade envolta no mundano, sem véus ou batinas ou burcas. Um dos motes de Chiara Lubich me era particularmente caro: "perder-se na multidão para impregná-la de divino".
1976. A ida de Demétrio para o Rio fez com que se procurasse alguém para substituí-lo no Conjunto. Não me alistei; tinha medo de palco. Mas alguém achou que éramos parecidos (magros, dentuços). Nunca entendi direito esse “critério”; mas o fato é que estive no palco do Theatro da Paz, na remontagem de Montaria, minha primeira experiência “de responsa” com as artes cênicas e a censura.
Primeiro, fazíamos um ensaio geral para a ala feminina dos Focolares, que, então, atestava a justeza da proposta cênica à mensagem revolucionária de Chiara, calcada nos Evangelhos, qual seja: a chamada ao diálogo entre as gerações, os povos, as culturas e as religiões. Depois, outro ensaio geral para a censura política, dos órgãos governamentais de controle. Malandros como todos os artistas dos palcos de então, “esquecíamos” certos trechos polêmicos que, claro, reinseríamos na montagem definitiva. Era um risco, sempre, em nada diferente do que experimentaram inúmeros artistas brasileiros naquela época mais que sombria.
Apesar das sombras e dos coturnos censores, nas reuniões e congressos do Movimento se cantava, amiúde, uma música gravada por Nara Leão (no álbum Manhã de Liberdade, 1965) e que sei de cor e salteado até hoje: “Faz escuro, mas eu canto / porque a manhã vai chegar / Vem ver comigo, companheiro / vai ser lindo / a cor do mundo mudar...”. A letra é de um poema publicado no livro Madrugada Camponesa (1965), de Thiago de Mello.
Muito do meu gosto musical e literário foi moldado na convivência com os Gen e o Focolare. De João Cabral de Mello Neto a Clarice Lispector; de Nara Leão a Elis Regina; de Chico Buarque ao Clube da Esquina, Heleno tinha nos deixado como herança uma paixão "antropofágica" não só pela cultura brasileira, mas, igualmente, pelas culturas latino-americanas e ibéricas. Tereza D’Ávila, João da Cruz, Santo Agostinho, Violeta Parra e Eduardo Galeano também faziam parte dessa "cesta básica antropo-teo-fágica".
Apesar das censuras, eram também os tempos da Teologia da Libertação, de Hélder Câmara, de Pedro Casaldáliga e de Leonardo Boff. Uma lufada de esperança no caráter revolucionário (em mais de um sentido) dos Evangelhos e um aggiornamento possível do catolicismo a partir da América Latina, sob a perspectiva do Concílio Vaticano II. É fato que o Movimento dos Focolares não se alinhava abertamente à tal Teologia, mas suas mensagens circulavam livremente entre os Gen de Belém – pelo menos nos da ala masculina.
Depois de Montaria, participei da montagem coletiva de As Sete Cenas de Patmos, Tupambaé e Rei Negado. "Mambembávamos" por aí, sempre apoiados pelos membros e simpatizantes do Movimento espalhados por esse mundão. Podia ser num ginásio de esportes, ou num salão paroquial, ou no exíguo palco de um cinema, ou em palcos históricos e portentosos, como os do Theatro da Paz (Belém), do Arthur Azevedo (São Luiz) e do 4 de Setembro (Teresina). Mesmo míope, não usava óculos em cena, nunca – como disse antes, eu era temeroso dos palcos. Por causa disso, e empolgado com uma performance em As Sete Cenas, caí, uma vez, do palco, bem diante da primeira fila da plateia. Mas fingi que tudo fora ensaiado e terminei a cena ali mesmo – com aplausos entusiasmados (rs).
De kombi, de avião, de barco ou de caminhão, a gente cantava, dançava e atuava literalmente conforme a música. Eram os tempos de nossas e de outras juventudes, algumas engajadas no movimento estudantil e na defesa de religiosos perseguidos pela Ditadura; outras não.
Chiara Lubich em pessoa só vi no final dos anos 1990, em São Paulo, quando ela veio receber o título de Doutora Honoris Causa na PUC, onde eu fazia doutorado. E aquela presença, ao mesmo tempo frágil e vívida, confirmou, entre outras coisas, a beleza das espiritualidades sagradas e profanas que comungávamos naqueles outros tempos sombrios, mas também – e felizmente – carregadas de esperança na luz da manhã que haveria de chegar.